Uma criança desesperada grita, em plena Praça Dom José Gaspar no Centro de São Paulo, para que não machuquem sua mãe. Chora ao vê-la ser retirada à força por agentes da Prefeitura de cima do carrinho em que vendia frutas todos os dias aos frequentadores da praça. Sua mãe também chora e tenta explicar aos agentes que aquelas frutas e aquele carrinho eram tudo que ela possui para tentar sustentar a filha. Todos assistem à cena comovidos e tentam argumentar com os funcionários da Subprefeitura, mas continuam recolhendo os produtos, afinal “ordens são ordens”.
Mas qual a “ordem” que regula os espaços públicos?
A cena retratada acima de fato aconteceu. Não apenas nesta situação específica que pude testemunhar em uma manhã de sexta-feira, mas ela acontece todos os dias, repetidamente, ao redor do mundo, violentando milhares de trabalhadores da economia informal. Além disso, também atividades culturais e mobilizações políticas são cotidianamente reprimidas e criminalizadas enquanto formas de existência e apropriação do espaço público em nome da mesma “ordem”.
Quem estabelece essa ordem? Quais os seus objetivos? Que impactos produz sobre as cidades? E na vida dos cidadãos? Essa ordem é justa? Há outras formas possíveis de se construir e, até mesmo, organizar o espaço público das cidades?
Os espaços públicos - que incluem desde calçadas em áreas residenciais a ruas, praças, parques, dentre outros - conectam as principais dimensões da vida urbana. Não apenas transitamos por eles diariamente no deslocamento casa-trabalho, como também nos tornamos de fato cidadãos ao ocupá-los para nosso lazer (seja passeando no domingo pela Av. Paulista, seja com os fluxos do funk), para expressão artística (a exemplo do poder de contestação do pixo e de reflexão do grafite) e para mobilização política (intensificada novamente no Brasil na última década). Estes espaços são, portanto, vitais para pensar e exercer a cidadania, sendo o local (em sentido amplo) por excelência em que exercemos nosso direito à cidade.
Se, por um lado, todos nós construímos a cidade em nosso cotidiano ao conferir sentido e valor a ela a partir de nossas vidas (deslocamentos, atividades, etc.); por outro, temos direito de usar, ocupar, produzir, habitar, governar e desfrutar das cidades de forma igualitária, como pressupõe o direito à cidade. E como fazer isso sem usar, ocupar e desfrutar os espaços públicos? Não há vivência possível de cidade sem a utilização destes espaços; não há direito à cidade sem podermos aproveitar de forma segura, justa, democrática e saudável nossos espaços públicos. Por isso, aproveito a oportunidade oferecida pelo Dia Mundial das Cidades para refletir, a partir de algumas cenas urbanas vividas pessoalmente por mim, em que medida os espaços públicos oferecidos pelas cidades brasileiras têm permitido ou bloqueado o exercício desse direito.
Descendo a Avenida Rebouças a pé, no meio da rua, junto a centenas de pessoas que iriam se somar à multidão já reunida em marcha a partir do Largo da Batata: é assim que me recordo do meu aniversário de 28 anos, em 20 de junho de 2013. Para quem não conhece São Paulo, trata-se de uma avenida conhecida pelo intenso tráfego de carros e, na minha opinião, pouco afeita a pedestres. Estar em meio a diversos desconhecidos andando onde algumas horas antes um carro haveria me atropelado a 60 km/h reivindicando mudanças no estado brasileiro me proporcionou a sensação de estar reescrevendo a história.
Naquele mês de Junho de 2013, o exercício do direito à manifestação através do direito à cidade por milhões de brasileiros realmente marcou a história do país. Em que pesem todos os desdobramentos e impactos supervenientes da disputa política em torno do seu significado, a ocupação de ruas, praças e avenidas em todo o país demonstrou uma força simbólica que ainda hoje reverbera. Desde então, as manifestações públicas - que em verdade nunca deixaram de existir - se tornaram mais frequentes. Assim como diferentes e renovadas formas de repressão.
A partir de 2013, foram aprovadas diversas iniciativas legislativas que têm buscado, de maneira inconstitucional, restringir o direito à manifestação, como apontam especialistas. Em alguns casos mais sutis, como o remanejamento de meios de transporte público que dificultam o acesso aos locais de mobilização (rotas de ônibus e funcionamento do metrô), até iniciativas legais que claramente buscam restringir as possibilidades de manifestação e ocupação política do espaço público, como o Decreto 64.074 do Governador de São Paulo, João Dória.
Esse decreto, por exemplo, burocratiza e dificulta o aviso prévio de manifestações às autoridades públicas, o qual deve ocorrer com 5 dias de antecedência e com itinerário definido em conjunto com o Comandante do Batalhão Territorial da Polícia Militar da área onde ocorrerá o evento (art. 2o). A manifestação deverá, ainda, “respeitar a livre circulação de pedestres e o tráfego de veículos” (art. 3o). A livre circulação de pedestres, por óbvio, está sempre no cerne de qualquer manifestação; enquanto a preservação do tráfego é evidentemente o que de fato o artigo visa assegurar. Não se trata, portanto, de garantir o direito de ir e vir, mas sim de assegurar que mobilizações políticas não podem colocar em risco a ordem urbanística estabelecida, na qual o domínio do automóvel sobre os espaços públicos deve permanecer intacto.
Colocando como parâmetro novamente a preservação de uma determinada “ordem pública e social”, como fundamenta a Lei 15.556/2014 do estado de São Paulo, estas iniciativas têm na prática imposto restrições ao direito à cidade, tanto no que concerne a ocupação de praças, ruas e avenidas para manifestação política - ao exigir aviso prévio e anuência de itinerário pelo estado - quanto até mesmo, mais uma vez, favorecendo a hegemonia dos automóveis na disputa pelo espaço público.
Como um direito coletivo do qual todos os cidadãos são portadores, garantido inclusive pela própria legislação brasileira (art. 2o, Lei Federal 10.257/2001), o direito à cidade nos assegura a possibilidade de manifestações que contestem o próprio estado - independentemente de sua anuência - através da interrupção da rotina da cidade com a ocupação de ruas, avenidas, praças, chafarizes, monumentos, parques e quaisquer outros espaços públicos como forma de conferir visibilidade à nossa reivindicação. Como propõe Harvey, é o direito que possuímos de “mudar a nós mesmos pela mudança da cidade”.
Milhares de foliões ocupam a Avenida São Luís para acompanhar o trio em que As Bahias e a Cozinha Mineira se apresentam. Duas mulheres trans, Raquel e Assucena, relembram como é importante, em pleno carnaval, estarmos todos ali, a maioria de nós LGBTs, celebrando e ao mesmo tempo nos fazendo presentes, dizendo que existimos e resistimos apesar de toda a violência que nos impõe a sociedade. E então começam a música “A cor dessa cidade sou eu; O canto dessa cidade é meu...” e todos entoam junto como um hino e um brado de guerra.
Naquele momento catártico, forjava-se um novo elo entre aquelas pessoas que lutam todos os dias pela sua sobrevivência em meio a LGBTfobia e a cidade na qual vivem essas agruras. Enquanto cantavam que a cidade pertencia a elas, São Paulo realmente passava a pertencer pelo menos um pouco mais às pessoas LGBTs. Ao se sentirem parte de uma festa que acontece eminentemente nas ruas, as ruas passam a ser mais familiares a elas e reconquistam mais e mais seu direito de ocupá-las e de circular sem medo.
É extremamente simbólico que o coro fosse liderado por duas mulheres trans. Segundo dados da organização internacional TransRespect, o Brasil é um dos países em que mais se mata pessoas trans, muitas vezes nos mesmos espaços públicos em que se celebra festas e paradas do orgulho LGBT. Com isso, a expectativa de vida da população trans é de 35 anos, menos da metade da média da população nacional. Além disso, um LGBT sofre algum tipo de violência (lesão corporal, tentativa de homicídio e homicídio) a cada 5 horas no país, de acordo com sistematização do Atlas da Violência.
Romper com esse ciclo de violência vai além da criminalização da LGBTfobia, como fez o STF este ano; é preciso uma profunda transformação social e cultural também. Nesse sentido, ações de reafirmação da visibilidade e do respeito às pessoas LGBTs nos espaços públicos tornam-se cada vez mais centrais. É essencial que estes espaços comportem e estejam aptos à promoção dos mais variados tipos de eventos organizados pela população LGBT, do fervo à luta, até mesmo pelo fato de que estes se encontram juntos e misturados muitas vezes. E não se trata apenas de possibilitar a realização das paradas LGBTs uma vez ao ano, mas, sim, de proporcionar condições para as diferentes formas de organização e celebração, seja nas áreas centrais, seja nas quebradas e na periferia.
É importante que as pessoas LGBTs consigam cada vez mais ocupar estes espaços, sendo necessário não apenas ações materiais, como iniciativas simbólicas. Ganhou relativa repercussão uma série de fotografias divulgadas no Twitter com o objetivo de alimentar a utopia do que seria, por exemplo, uma Manaus em que casais LGBTs se sentissem seguros para demonstrar afetos em locais públicos. O fotógrafo foi provocado pela vivência que teve em São Paulo, em que observou uma realidade urbana com uma frequência maior de demonstrações públicas de afeto entre esses casais. Obviamente a realidade dos espaços públicos da capital paulista ainda está muito longe de promover uma efetiva segurança para esses gestos tão banais, ainda sendo registrados cotidianamente inúmeros casos de discriminação e violência.
De toda forma, o caso demonstra como o afeto da população LGBT ainda possui um aspecto profundamente político quando exercido em espaços públicos, gerando reflexões e impactando comportamentos nas mais diferentes pessoas, até mesmo em pessoas LGBTs que vivenciam outras realidades. É preciso visibilizar para ocupar e ocupar para visibilizar. Diante disso, assim como há quem considere como marco de nascimento do movimento LGBT a ocupação da cidade a partir do levante de Stonewall (NYC, 1969); a última fronteira imposta pela LGBTfobia terá sido rompida somente quando a última pessoa LGBT tiver acesso pleno à cidade, podendo finalmente gozar de maneira plena de seu direito à cidade.
Domingo tem sido um dia cheio na Avenida Paulista, principalmente depois que passou a ser exclusiva a pedestres e ciclistas através de programa municipal. São milhares de paulistanos que vão passear com amigos e família, fazer compras, tomar sol, andar de skate, patins ou bicicleta, tomar uma água de coco ou uma cerveja, ouvir artistas de rua tocando, dentre outras centenas de atividades possíveis. Em um desses domingos, parei para comprar uma água de um vendedor ambulante e, junto comigo, um policial militar também comprava uma água. Este policial estava ali todos os dias, pois está alocado numa base comunitária em plena avenida. Até mesmo parecia conhecer o vendedor, conversando sobre como estava o movimento daquele dia. “Está ótimo, todo mundo com muita sede com o calor de hoje”, respondeu o trabalhador. Alguns minutos depois, enquanto eu ainda me encontrava sentado na calçada oposta bebendo a água comprada do ambulante, servidores da Subprefeitura e da Guarda Civil Metropolitana abordavam violentamente o vendedor e começavam a apreender tudo que estava em sua posse, enquanto o Policial Militar observava desde a Base Comunitária.
Reiterar nesta última cena o cotidiano vivido por vendedores ambulantes é uma forma de retomar o ponto central deste texto: qual a ordem que governa os espaços públicos de nossa cidade?
Essa ordem é aquela que permite, por um lado, aos cidadãos e ao próprio Policial Militar usufruírem dos benefícios do comércio ambulante; no entanto, criminaliza e destitui de seus bens e meios de sobrevivência aqueles que proporcionam estes mesmos benefícios. Embora o comércio de rua e/ou ambulante esteja até mesmo nas origens das próprias cidades, estas resolveram estabelecer uma verdadeira cruzada contra seus atores. Com isso, não apenas estão exterminando dinâmicas centrais para a vitalidade dos centros urbanos e, sejamos sinceros, tentando enxugar gelo, como estão violando o direito à cidade e à sobrevivência de milhões de brasileiros que não conseguem acessar o mercado de empregos formal.
Esta não pode mais ser a ordem que orienta a construção, gestão e ocupação dos espaços públicos. Como reafirmado até mesmo em agendas e documentos adotados pela ONU, devem ser construídos espaços públicos seguros, inclusivos, acessíveis e de qualidade, os quais fomentem a coesão social através da interação entre os diferentes grupos sociais, propiciem a manifestação de expressões culturais e possibilitem a participação política, como se comprometeram os países ao adotarem a Nova Agenda Urbana. Declararam ainda que o direito à cidade é paradigma central para repensar o papel desempenhado pelos espaços públicos na transformação do modelo de desenvolvimento urbano adotado. Mas compromissos e visões como essa apenas serão de fato norteadoras da ação pública quando for assim assumida e demandada pela sociedade como um todo.
Aproveitemos a oportunidade do Dia Mundial das Cidades para construir uma nova utopia para as cidades brasileiras, construindo novas formas de encarar seus espaços públicos. Eles não podem ser vistos como o espaço do medo e da violência; mas precisam ser reconstruídos como lugares de esperança e oportunidades. Retomar os espaços das cidades ao longo do ano inteiro como fazemos durante alguns dias de carnaval. O conflito entre os diferentes usos possíveis destes espaços é inevitável, mas que nossa forma de administrar o conflito parta do pressuposto de que abraçar o desconhecido e a diversidade são formas de fortalecimento da nossa sociedade, e não ameaças ao nosso sossego ou segurança. O direito à cidade para todas, todos e todes deve ser a nova ordem, e que o espaço público seja seu espaço por excelência.
Rodrigo Faria G. Iacovini é advogado e doutor em planejamento urbano e regional pela FAUUSP, assessor do Instituto Pólis, coordenador executivo do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico e membro do coletivo LabLaje.